O Fogo que Nos Reúne

Há muito tempo, quando a humanidade ainda não tinha esse nome e corria precariamente pela sobrevivência, algo inesperado — e reverenciado como divino — surgiu: o fogo.

Podemos ser levados a pensar que esse foi um presente trazido por Prometeu aos humanos, um dom pelo qual ele arcou com um fardo pesado. Mas essa narrativa é, muitas vezes, equivocada — polida demais. E aqui começa o porquê.

O fogo descoberto nas profundezas das cavernas — que aquecia, protegia e unia — não era utilizado para cozinhar ou assar por milhares de anos. Seu uso primordial não era prático, mas simbólico. O fogo era reverenciado como uma divindade viva, um espírito que acolhe, que protege.

Esse fogo — que une antes de servir — ainda vive entre nós.
Ele se manifesta nas rodas de histórias contadas ao redor da fogueira, nos luais que aquecem corpos e memórias, nas festas populares como o São João, onde se pula a fogueira como quem celebra o vínculo com o outro e com a família.
Ali, mesmo sem perceber, repetimos antigos gestos sagrados: buscamos calor, proximidade e sentido em torno de uma chama.
Às vezes, esse momento é mais íntimo e verdadeiro do que os jantares de Natal, pois nos reconecta a algo que está antes da ceia: a necessidade de pertencer e compartilhar o calor da vida.

Não à toa, no centro do Olimpo, estava Héstia — a única deusa que não disputava poder. Ela representava esse fogo sagrado e silencioso, mantido no coração do lar. Mas isso gera uma confusão: se o fogo trazido à humanidade é o de Héstia, de onde vem o fogo de Prometeu? Como ele também pode ser o de Héstia?

Talvez porque estejamos falando de camadas distintas de um mesmo mistério. O fogo de Héstia parece ser anterior, mais primitivo. Uma chispa do fogo divino original — aquele que aquece antes mesmo de iluminar. Um símbolo de origem que se escondeu sob as camadas de mitos humanizados. Por que não pensar que o fogo de Héstia vem de algo ainda mais antigo — como Phanes, o deus-luz primordial? E por que Phanes foi sendo reduzido a um símbolo quase imperceptível na cosmovisão grega?

Talvez porque a alma da civilização ocidental passou por muitas fases: seitas místicas, religiões dogmáticas, períodos de racionalização. Restaram apenas esses movimentos sutis da alma coletiva — que às vezes nos confundem, às vezes nos guiam, nos elevam, nos revoltam… ou nos destroem.

O Numinoso tem essa vitalidade perigosa. Para quem ainda está despreparado, ele pode fulminar — como aconteceu com Sêmele, que foi consumida ao ver Zeus em sua forma verdadeira. Por isso, antes de encarar as imagens numinosas, é necessário atravessar uma apoteose interior. Transformação é o preço para se olhar o sol.

Outra forma de tocar o indizível é por meio das chispas divinas — aquelas que nos foram trazidas por intermediários. Como Prometeu, que roubou o fogo com esforço e dor. Ou como Héstia, que o introduziu em silêncio, como quem acende uma vela no coração da menor unidade social: a família.

Ambos trouxeram o fogo. Mas o modo como cada um o entregou diz muito sobre os caminhos que a alma pode seguir: o caminho da rebeldia e da luta, ou o da presença constante, acolhedora e invisível. E talvez o verdadeiro fogo não seja um ou outro — mas ambos tenham a mesma origem.

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