Por Amor, Cortei-me

Houve um tempo em que Xangô, senhor do trovão e do fogo, era amado por muitas.
Entre elas, duas mulheres — ambas fortes, cada uma à sua maneira.
Obá, a guerreira das margens tortuosas.
Oxum, a doce que sabia seduzir com o silêncio e o espelho.

Obá lutava ao lado de Xangô. Conhecia o sangue, a espada, o mundo.
Mas desejava ser amada como Oxum era — com aquele olhar demorado, o carinho lento, o encantamento que parecia brotar da própria água.

Um dia, movida pela dúvida, procurou Oxum e perguntou, com o coração aberto demais:

— O que posso fazer para que Xangô me ame como te ama?

Oxum sorriu. Um sorriso suave… e cortante.

— Ah, irmã. Faça-lhe uma sopa. Uma sopa com sua orelha. Foi assim que conquistei seu amor — e ele adorou.

Obá acreditou.
Voltou em silêncio, preparou o prato com mãos firmes.
Cortou a si mesma. Serviu com orgulho.

Mas quando Xangô viu o que havia ali, recuou.

— Obá… o que fizeste?

Ela contou, sem hesitar, esperando talvez um gesto de ternura.
Mas Xangô, horrorizado, se levantou com fúria.
Não havia ternura.
Não havia compreensão.

Só o vazio onde antes morava a esperança.

Obá partiu. Silenciosa. Cortada duas vezes: no corpo e no amor.
Chorou por dias nas margens do rio — até que tornou-se ele.
Água curva, revolta, viva.
Água que não se acomoda, que carrega em sua corrente a dor de ter acreditado em palavras doces demais.

Desde então, Oxum ficou com seus espelhos.
Xangô seguiu com seus raios.
E Obá?
Obá não pertence mais a ninguém.

Ela é o próprio rio onde as verdades torcem o leito.
Onde o amor, às vezes, é um corte profundo.
E a dignidade nasce da cicatriz.

Este conto nasce de um mito de origem iorubá, onde Obá — orixá das águas revoltas e do amor corajoso — é atravessada por um gesto de entrega extrema. Mais do que uma narrativa religiosa, ele ecoa um tema profundamente humano e universal: o desejo de ser amado a qualquer custo. A mutilação aqui não é apenas física — é o símbolo daquilo que tantas vezes cortamos de nós mesmos para caber no afeto do outro. Um alerta sutil: o amor que exige dor como prova talvez nunca tenha sido amor, mas apenas silêncio mal disfarçado de ternura.

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