Sacrifício.
Muitos mitos tocam esse tema — às vezes o exaltam como gesto sagrado, outras vezes o desvelam como armadilha perigosa. Como tudo que nasce da alma, o sacrifício tem faces duplas: uma que eleva, outra que fere. Há histórias que reúnem ambas. Algumas alertam. Outras redimem.
Mas afinal, o que é o sacrifício? Sacro ofício — um trabalho sagrado?
O verdadeiro sacro ofício é o abandono consciente de algo precioso. Como Prometeu, que entregou o fogo aos homens e aceitou o peso de sua escolha. É um gesto que transcende a dor, porque nasce da liberdade. Não exige aplauso. Não pede retribuição. Apenas acontece, como uma oferenda interna.
Mas também existe outro tipo: o sacrifício cego. Aquele que nasce não da consciência, mas da carência e da angústia. Tolher-se sem compreender. Cortar as flores da própria árvore antes que amadureçam em frutos. Definhar em solo árido, clamando por água regrada a conta gota. Dar o que mal se tem — não por amor, mas pelo medo de não ser amado. É o gesto de quem se oferece como migalha, esperando por reconhecimento, perdão ou pertencimento.
Muitas vezes, esse sacrifício é encenado como redenção, mas vem da culpa e da falsa crença de que é preciso sofrer para ser aceito. Como se mutilar-se pudesse restaurar algo perdido — como Obá, oferecendo sua orelha. Como os antigos sacrifícios de animais, feitos para aplacar a fúria divina. Mas a verdade é que nenhuma culpa se dissolve no sangue do outro. A verdadeira purificação não vem de fora. A redenção só pode florescer quando vem da própria alma.
Quantos de nós já não passamos por isso? Por sacrifícios involuntários, não pedidos. Sofremos mentalmente, emocionalmente, fisicamente, espiritualmente. Por se doar demais. Por supervalorizar o outro e esquecer o próprio valor. E quando olhamos no espelho, o reflexo já não nos reconhece.
Esse tipo de doação “bondosa” muitas vezes é uma forma de autotraição. Uma ingenuidade disfarçada de virtude. Um espírito sombrio com vestes altruístas. É o lobo vestido de cordeiro — não para enganar os outros, mas para iludir a si mesmo.
O verdadeiro sacro ofício, porém, é lúcido. Reconhece o valor do outro, mas também o próprio. É doação consciente, como a de Krishna, Cristo, Prometeu — arquétipos vivos que ressoam profundamente na alma.
E nem sempre esse trabalho sagrado se volta ao outro. Às vezes, o maior sacrifício é interno: abandonar crenças antigas, soltar visões de mundo que pareciam eternas. Matar um pedaço de si para nascer mais inteiro. Essa morte simbólica dói. Mas é fértil.
E é nesse ponto que o sacrifício se revela não como fim — mas como passagem. Um caminho estreito, sim. Mas que conduz direto ao centro da alma.